sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

XXIX - Sônia

Em casa, eu contei para o meu irmão tudo que tinha vivido na noite anterior enquanto ele preparava algo para comermos. Eu achei que ele não estivesse prestando a menor atenção até virar-se para mim e dizer:
– Fico feliz que tenha gostado tanto. – Mas não havia animação alguma em sua voz. – É bom ver você empolgada com coisas que não sejam sapatos, jóias ou cremes...


– Você tem o direito de estar chateado comigo. Sei que largou sua programação pra cuidar de mim, e eu fui ingrata. Não pode me perdoar?
– Não estou chateado com você, ok?


– Não queria que as coisas fossem assim, mas não posso mudar o passado. É muito triste saber que você está acostumado que eu te magoe...
– Não, Léo... Você não me magoa... Escute! – Ele inspirou. – Vamos esquecer esse assunto, tá legal? Eu estou com fome, vamos comer.


Sentamos para almoçar e o único ruído que se ouvia era o de nossa mastigação. Mas de alguma forma eu sabia que ele havia me desculpado. Naquele momento, eu ainda acreditava que a maior chateação de meu irmão no episódio, era eu tê-lo deixado para aceitar o convite do meu professor.


Eu sabia que havia me esquecido de alguma coisa quando acordei já pelo meio da manhã de sábado. Mas não me lembrava do quê. Pela janela deslumbrei o lindo dia que fazia lá fora. Pedro passaria o dia treinando, ele avisara. Não pude deixar de imaginar o tipo de pós-treino que ele teria, já que a cena do dia anterior ainda estava gravada na minha retina.


 Havia uma ligação não atendida de papai no meu celular e eu retornei.
– Léo. Sei que está melhor, mas gostaria de te ver, porque não vem almoçar com a gente?


Aceitei o convite para o almoço, com direito a paparicos extras. Meu pai me encheu de carinhos e ainda me deu de presente – contando com uma boa ajuda de Dora, é claro – a bolsa Gucci que eu estava namorando mesmo antes de colocarem-na à venda, mas como todo médico que se preza não sossegou enquanto não me examinou.


– Não esqueça de me mandar o resultado dos exames assim que saírem, dona Leandra! – Ele disse ao se despedir.
– Eu não devia mandar só pela sua implicância, pai! Sabe que detesto esse nome!


– Eu não sou implicante. Seu nome é lindo! Quase tão lindo quanto você.
– Ah, Léo! Você às vezes é tão infantil! – Dora plagiou inconscientemente a frase de Nicole ao beijar-me na bochecha antes d’eu entrar no meu carro e partir.


A “pracinha de Ariel”, que outrora fora minha, não ficava necessariamente no meu percurso de volta para UFEB, mas era um quarteirão muito pequeno para que eu hesitasse desviar meu caminho e passar por lá. Tinha esperanças de ver a “baixinha”. Era incrível que eu tivesse me apegado a um bebê assim em tão pouco tempo, mas ela era tão adorável!


Estacionei, desci e busquei com o olhar entre as crianças do parquinho, mas não consegui encontrá-la. Já pensava em voltar para o meu carro quando escutei e imediatamente reconheci a voz fina atrás de mim:
– Tia Lééééééo!


Eu sabia que ela estava correndo pra mim, mesmo antes de virar para receber em meus braços a menina doce dos cabelos de fogo. Vinha na velocidade que sua coordenação motora lhe permitia com o sorriso aberto.
– Ariel!


Levantei-a em meu colo e ela se agarrou em meu pescoço num abraço tão terno que me fez imaginar o que eu poderia ter feito para merecer ser tão querida. Ela estava linda. Um laço prendia uma grande mecha de seu cabelo na parte de trás, e a franja estava cuidadosamente penteada.


– Estava com saudades de você, baixinha!
– “Tamém”, tia Léo! Eu ganhei um “laxinho”... Viu, viu? – A menina mexia a cabeça para me mostrar o acessório.


– Vi! Está lindo, Ariel! Seu pai vai te levar em alguma festa? – Perguntei tentando avistar Yuri na praça. Estava admirada que estivesse tão distante da filha naquele local aberto.
– Papai não tá não...


Engoli em seco pressentido o que, na verdade, eu deveria ter calculado. Ao mesmo tempo escutei um chamado feminino, alto e desesperado:
– Ariel! Ariel!


Era a mulher mais bonita que eu já tinha visto, depois da minha mãe. Pude avaliar, mesmo que ela carregasse uma expressão de puro pavor. Tinha a pele alva, lisa e sem manchas. O cabelo ruivo pela altura do ombro num corte perfeito e elegante. Os olhos azuis exatamente iguais aos de Ariel. Ela avançava na minha direção.


Eu estava paralisada pelo espanto, boquiaberta com a improbabilidade daquela situação. Não podia tirar-lhe a razão d’ela esbravejar para mim:
– Largue ela! Largue a minha filha agora!


Imediatamente, ainda que com algum cuidado, eu coloquei Ariel no chão enquanto tentava fazer com que ela me ouvisse, uma vez que não parava de gritar.
– Desculpe! Desculpe, Sônia, não quis assustá-la. Pronto.


Ao escutar seu nome, ela subitamente tomou ar e olhou para mim, confusa:
– Eu conheço você?
– Creio que não...
– É a tia Léo, mamãe... – Ariel se fez ouvir do chão, apoiada na minha perna.


– Ah! – Sônia exclamou, fazendo parecer que ao menos de nome ela sabia quem eu era. Ou achava que sabia. Mas o quê exatamente ela sabia? – Você que é a tia Léo? Perdão pelos meus berros, mas eu pensei que...
– Claro! – Eu a interrompi. Era óbvio que eu faria a mesma coisa em seu lugar. – Eu entendo, eu que peço desculpas... Achei que ela estaria com...


– Yuri? – Foi a sua vez de me interromper, concluindo com uma meia pergunta, a frase que eu não conseguiria terminar sem gaguejar, e então completou, ao perceber meu embaraço. – Tudo bem!

Eu tentava compreender o significado daquele “Tudo bem!”, tudo o que ele poderia englobar, ou ignorar.


– A Ariel não pára de falar de você...  Você deve ter jeito com crianças, ela não é de gostar de qualquer pessoa...
– Definitivamente não tenho, Sônia... Mas de uma forma estranha preciso admitir que depois que conheci Ariel, as crianças do mundo resolveram me perdoar por isso.


Sônia soltou uma gargalhada. Até com a boca escancarada a mulher tinha estilo.
– Gostei da sua sinceridade, garota...

Estava incomodada. Ariel conversava sobre mim com sua mãe? E estava tudo bem? Não dava para entender. Além do mais, a beleza da mulher me oprimia. Era quase ofensiva para uma pessoa vaidosa como eu.


– Sônia, eu... É sério, desculpe... Imagino o susto que você tomou.
– Já passou... – Ela sorriu solidária, enquanto pegava sua filha no colo. – Quer tomar um café?


Eu não sei por que aceitei aquele convite. Eu deveria ter recusado educadamente, pegado meu carro e voltado para a UFEB. Os cafés há muito já haviam sido consumidos, quando Sônia perguntou, quebrando o gelo:
– Você é aluna do Yuri, certo? Ariel nem sempre é muito clara em seus diálogos...


Foi quando me dei conta do que havia esquecido. Perdi o prazo para cancelar a disciplina de Sociologia, e naquele momento, eu senti mais ainda a necessidade de trancá-la.
– Ela começou a falar um pouco mais tarde que o normal... – Concluiu.
– É... Eu sei... Sou aluna do seu marido, sim. – Respondi. – Estou no primeiro semestre de Medicina na UFEB...


Sônia sorriu e iniciou uma conversa amigável e descontraída. Se alguma vez eu pensei que conhecer a esposa de Yuri solucionaria grande parte de minhas dúvidas, descobri que, pelo contrário, apenas novas perguntas se formavam. Afinal, mesmo que as fofocas da UFEB não tivessem alcançado seu lar, sua própria mãe nos flagrara numa situação no mínimo constrangedora e não creio que Edna tenha omitido o que sabia.


Toda aquela situação só aumentava o meu mal estar. Se ela sabia quem eu era porque estava me tratando tão bem? Yuri então não falou sobre mim? Não se explicou? Não se defendeu? Também, o que é que eu estava esperando? Tudo o que eu gostaria de pensar sobre Sônia e o casamento de Yuri caía por terra naquele momento.


Inventei uma reunião para um trabalho de grupo e me levantei. Dei um beijo em Ariel e despedi-me de Sônia gentilmente. Ela deixou clara sua satisfação em ter me conhecido. Entrei no carro e parti.


Eu havia desejado que ela fosse uma megera intragável, uma alpinista social, uma perua frívola que só ligasse para status e não estivesse nem aí para a filha. No entanto, encontrei uma mulher simpática, zelosa e preocupada. Excessivamente vaidosa, é verdade, mas isso era algo que eu não podia criticar.


Não conseguia encontrar os motivos que justificassem a postura de Yuri e o odiei por isso. Mas o maior ódio que sentia era de mim mesma, por ter me deixado levar, por ter seguido minhas emoções e desejos, ao invés de ter dado ouvidos à minha razão. Varei a sala de casa, passando batida por Pedro que nada entendeu.


Joguei-me na minha cama já aos soluços. Eu tinha perdido o prazo. Agora, certamente seria reprovada por falta. Mas não era isso que me fazia chorar. Percebi-me uma pessoa imunda e horrível por aceitar os cortejos de um homem casado com uma boa mulher, uma boa mãe, de uma criança que eu amava. Mais do que isso, havia me sentido atraída por ele.


Quanto mais eu pensava, pior parecia. Ouvi Pedro bater na porta e me chamar:
– Léo! O que houve? Posso entrar?
– Não! Não houve nada! Me deixa em paz! – Gritei.


– Como quiser, Léo...

Eu pude ouvir seus passos se afastando da minha porta, provavelmente em direção a seu quarto. Imaginar a cena me angustiou ainda mais, porque no fundo estava descontando nele, aquela manhã do dia anterior.


Levantei da cama e entrei no banho como se a água pudesse lavar minha alma. Esfreguei-me com tanta força que cheguei a esfolar minha pele, e assim mesmo não consegui me sentir nem um pouco aliviada.


Meu telefone tocou no momento exato que eu saí do banheiro. Deixei-o tocar até que a mensagem automática da operadora atendeu, fazendo-o calar.


Percebi que já era noite antes de me deixar cair na cama outra vez. Eu tentava encontrar uma forma de amenizar o que eu estava sentindo. Se fosse possível, eu teria arrancado fora minha cabeça, para parar de pensar. Alguns minutos se passaram até meu telefone tocar outra vez.


Sem disposição, eu deixei que tocasse algum tempo, mas receando que fosse meu pai querendo saber se eu havia chegado bem, achei melhor atender.
– Alô... – Cumprimentei ainda soluçando, sem nem sequer olhar o número.


 A resposta de Nuno do outro lado da linha soou como uma bóia de salvação.
– Que voz é essa, gata? Saudades de mim?



2 comentários:

  1. Mew, eu achei que a Léo exagerou em sua culpa... Ainda mais agora, que sei o que está por vir. Mas sou ultrapassada! rsrsrsrsrsrs

    AMO!
    bjosmil! *.*

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  2. Não, a Léo é beeeem dramática, mesmo... =|

    Brigadim!
    ..: Bjks :..

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