terça-feira, 7 de dezembro de 2010

XXXI – Impressões

Ainda estava escuro quando o taxi parou em frente a minha casa na UFEB. Eu não estava arrependida de nada, mas também não me sentia plena. E talvez tenha sido essa sensação que não me permitiu continuar no loft e compartilhar um delicioso desjejum com Nuno. Eu o havia usado como válvula de escape, e não estava me sentindo bem com isso.


Abri a porta e dei de cara com Pedro dormindo no sofá. Aquela cena me irritou profundamente. Era para eu me sentir mais culpada por toda a preocupação de “irmão mais velho” que ele tinha comigo?


Ou o barulho da porta, ou dos meus pensamentos, fizeram-no acordar.
– Pulgas na cama Pedro? É o que dá trazer qualquer uma pra dormir aqui!
– Onde você estava? Porque não levou o celular? – Perguntou ainda sonolento, ajeitando-se nas almofadas.


Joguei minha bolsa ao seu lado, antes de responder:
– Não queria ser incomodada...
– Você podia ter avisado que não viria dormir em casa, Léo...


Pedro se pôs de pé, enquanto eu perguntava, irônica:
– Como você me avisou na sexta?
– O quê que é? Tá me dando o troco?


– Vai me prender por isso?
– Não, Léo... – Senti em Pedro uma vontade de não brigar, mas em mim o sentimento era o contrário. Eu queria bater nele. – Deixa pra lá... Eu estava preocupado, mas você está bem... Eu vou pro campo. Temos jogo mais tarde hoje.


– Bom amasso pra você...
Pedro não deu bola e nem respondeu minha provocação. Tomou o rumo de seu quarto tencionando me deixar falando sozinha. Não tinha graça nenhuma, eu queria muito irritá-lo.


A minha noite havia sido excelente. E senti-me bem e relaxada quando adormeci no colo de Nuno. Mas porque a sensação não se prolongara até agora? Porque ela me acordou tão cedo, ardendo mais do que antes? Decidi que ainda não tinha terminado.


Entrei no quarto do meu irmão já esbravejando:
– Foi por isso que você disse que não queria ir embora, Pedro? Porque lá no time grande o “buraco é mais embaixo” e você não ia poder promover suas orgias com as “Marias Chuteiras”? Imagino a baixaria que não rolou naquele maldito churrasco de despedida!


Ainda calado, meu irmão virou para mim. Demorou alguns segundos me encarando segurando os lábios com os dentes, para forçar-se a não falar, mas não conseguiu se conter:
– É! Acertou em cheio! Você é tão inteligente, Léo, não sei como demorou tanto para perceber algo tão óbvio!


Pela sua expressão, não pude definir se ele estava falando sério ou debochando de mim, e isso quase me enlouqueceu. Ele continuou:
– Aliás! Eu acho que você deveria experimentar, sabe? Uma orgia? Porque pelo visto, o seu amigo cabeludo não deu conta do recado!


– O que você está insinuando que eu seja, seu... Seu... – Não consegui completar.
– Eu não estou insinuando mais do que o quê você já está afirmando que eu seja, Léo! Por favor, saia do meu quarto, eu preciso me trocar.


Obedeci ainda mais revoltada. Como se eu nunca tivesse visto Pedro de cuecas! Fui direto para meu quarto batendo o pé. Pensei em chamar o Tatá. Tinha absoluta certeza que ele toparia fazer compras comigo, e, àquela altura, só um programa como esse poderia aliviar todo meu estresse. Mas ainda era cedo demais.


Entrei no banho, aproveitei para ficar bastante tempo de molho na banheira. Relaxei tanto que quase peguei no sono. Cuidei da minha cútis e levei um tempo enorme escolhendo uma roupa. Só então telefonei para o meu amigo. Como presumi, ele adorou a idéia.


Assim que o vi, reparei no seu novo corte de cabelo e ele ficou orgulhoso. Durante nosso passeio por lojas de grife, eu contei tudo a ele. Sobre o Pôr do Sol, sobre Sônia, sobre a minha noite com Nuno. Mas como de costume, omiti alguns detalhes, especialmente os que diziam respeito aos meus sentimentos. Tatá ficou mais do que curioso quando contei sobre a beleza e simpatia da esposa de Yuri.
– A mulher é linda assim, é?


– Ela não é só bonita, Tatá... É elegante... Tem postura, caminha com tanta classe! Como se a vida toda tivesse participado de concursos de beleza. Acha que devo levar esse gloss? – Mudei inesperadamente o assunto ao reparar no display a minha frente.
– Loira! Isso é Givenchy! Se você não levar eu te bato!


Almoçamos no restaurante de praxe, e depois resolvemos dar uma volta a pé mesmo pelo campus. Não era uma coisa que eu curtisse, sinceramente, mas Tatá adorava, para observar aqui e ali, se atualizar, encontrar alguém, ou escutar uma fofoca. Ele fazia tanto por mim, não seria nenhum sacrifício.


Sentamo-nos em alguma mesa de alguma das praças da UFEB, e continuamos a nossa conversa enquanto o olhar atento de Tadeu não perdia nada. Até uma cena me chamar atenção.
– O que está acontecendo ali, Tatá? – Perguntei indicando com a cabeça.


Tentava ser discreta. O irmão de Penélope discutia afetadamente com Fefê. Eu nunca imaginei ver a figura de Zeca com uma expressão tão enfurecida. Aliás, eu nunca o imaginei brigando com quem quer que fosse.
– Ah! – Tatá respondeu numa bufada enfadada. – Fefê!
– Eu sei quem é ela, Tatá! Mesmo que eu não quisesse, quem consegue não reparar nessas roupas e tatuagens!


– Eu já não disse a você que ela é apaixonada pelo Doda? E que ele a faz de gato e sapato por conta disso né? Ela só falta mesmo abanar o rabo. Acredite, se ela tivesse, abanava.
– Não me conformo! Olha o jeito dela! Ela não parece uma mulher que se deixa dominar, é tão... Alternativa! E porque está gritando com o Zeca? Aquela criatura não faria mal a uma mosca! – Ao contrário de sua irmã, eu devia ter dito.


– Eles moram na mesma República, né? Dizem as más línguas que ele não suporta essa submissão dela e eles vivem discutindo... Se quer minha opinião, acho que o Zeca é completamente apaixonado por ela...
– Mas eles são tão diferentes um do outro! É claro que isso não iria funcionar!


– Eu não acho, Léo! Onde está a regra que diz isso? Onde está escrito que escolhemos por quem nos apaixonamos? Me encontre um manual de compatibilidade que funcione!

É por essas e outras que o mais seguro é não se apaixonar.


Pedi licença a Tadeu para ir ao banheiro. Estava naquela posição ridícula, tentando me equilibrar para não encostar as pernas no vaso sanitário, quando ouvi alguém entrar. Junto com o barulho da dobradiça mal lubrificada, um som de pranto muito baixo.


Abri a porta do reservado e dei de cara com Fefê encostada em um canto, as mãos cobrindo o rosto. Eu estava constrangida com a cena. Levei mais tempo que o necessário lavando as minhas mãos e arrumando meus cabelos enquanto decidia se falava alguma coisa com ela ou fingia que não a vi.


Acabei tomando a decisão errada:
– Err... Fernanda... Você... Precisa de ajuda? Quer que eu te pegue uma água, ou chame alguém?

Fefê continuava com a cabeça baixa. Nem sei se ela tinha consciência de que era eu quem estava ali.


No momento em que virou-se e levantou o rosto manchado de maquiagem, seu semblante traduziu seus pensamentos mesmo antes dela manifestá-los:
– Porque gente como você se preocuparia com uma pessoa como eu? Se quiser mesmo me ajudar, suma daqui e me poupe dessa humilhação!


Vê-la naquele estado, apenas reafirmou a minha tese acerca de sentimentos. Eu acatei sua vontade em silêncio. Nem poderia culpá-la pela sua reação. A imagem que ela fazia de mim era, em sua maior parte, responsabilidade minha mesmo. A de patricinha popular da qual sempre me orgulhei.


Tatá engoliu minha desculpa de ter coisas para arrumar e deveres por fazer, portanto, fomos embora. Deixei-o em casa antes de anoitecer.
– Te vejo amanhã na aula de Sociologia? – Ele perguntou me fazendo desconfiar que desejasse mais informação do que eu já havia lhe dado.
– Sim. – Menti, mas não acho que ele tenha acreditado.


Eu não me sentia nada bem com isso. Mas eu nunca falava abertamente sobre certas coisas com quase ninguém. No caso de Yuri, nem mesmo a Nicole eu achei que tivesse coragem de confessar. Ainda estava com vergonha. Entrei em casa procurando por meu irmão e não me surpreendi ao constatar que ele ainda não havia voltado.


Tomei uma ducha, vesti um uma roupa de dormir, voltei para a sala e liguei a TV. Procurei algo divertido, que me melhorasse o humor, mas mesmo com todos os canais da TV a cabo a programação aos domingos era medonha. Acabei adormecendo ali mesmo no sofá.


– Léo... – Ouvi a voz de Pedro me chamar. – Você está toda torta aí... Vai acordar com torcicolo amanhã... Vá dormir na cama, anda...
– Que horas são? – Perguntei antes mesmo de abrir os olhos.


– Quase duas da manhã... Venha, eu te ajudo. – Ele esticou sua mão para mim.
– Nossa! Isso tudo?! – Então percebi que ele não estava com uniforme do futebol.
Vestia uma roupa estilo rebelde-arrumadinho. O cabelo também estava diferente, com parte da franja caindo na frente do rosto.


Aceitei seu auxílio para levantar, mas sonolenta que estava, tropecei em seus pés, ou nos meus, não sei ao certo. Meu irmão me amparou antes que eu caísse, mesmo assim, meu rosto bateu em seu peito e pude sentir o quanto estava perfumado. Pedro Sorriu.
– Ôpa! – Exclamou. – Caindo de madura?


– Desculpe! – Pedi, me recompondo. – Você vai sair?
– Não, Léo... Acabei de chegar... – É claro! Meu irmão não estava em casa.


– Ah... – Foi o que consegui responder enquanto era conduzida por ele até meu quarto. – Poxa, Pedro! Sou mesmo um fiasco não é?
– Fiasco?! – Pedro parecia sincero em sua dúvida.


– É... – Respondi embaraçada. – Eu pedi um voto de confiança para cuidar de você e fracassei! Eu não consigo nem dar conta de mim!
– Eu não me importo, Léo... Sabe que gosto de cuidar de você.

Estranhamente, desta vez, não me incomodou ouvi-lo falar isso.


Paramos ao chegar à minha porta. Ainda curiosa em saber onde ele havia ido tão arrumado e cheiroso, não resisti em fazer a pergunta:
– Quem foi a merecedora de toda a sua produção hoje?
– Não encontrei quem eu queria... – Ele disfarçou. – Boa noite, Léo.


– Mas quem é que você queria encontrar? Posso saber? – Insisti.
– Boa noite, Léo! – Ele repetiu com mais ênfase, antes de se virar para seu próprio quarto.


Eu não consegui pegar no sono novamente. Estava aborrecida comigo mesma por ter provocado Pedro gratuitamente pela manhã, e agora ele demonstrava não estar nem um pouco magoado comigo apesar de tudo. Pelo contrário, mostrava-se o mesmo irmão protetor que sempre foi para mim. Além disso, não pude deixar de passar a madrugada tentando adivinhar quem era a responsável pela súbita vaidade de meu irmão.


Veio o sol, e quando escutei a movimentação na casa, eu me levantei. Pedro tinha resolvido fazer massa doce torrada. O cheiro tomava conta da cozinha até a sala.
– Bom dia, Léo! Está servida?


É óbvio que eu estaria e nos sentamos para comer. Estava delicioso, como de costume, mas eu estava incomodada e Pedro percebeu:
– O que foi que houve? Pensei que gostasse disso...
– Não tem nada com a comida, Pedro...


– Então com o quê é que tem?
Eu também estava cismada com aquele bom humor repentino do meu irmão desde a madrugada.
– Eu sei lá! Diga você! Você que está falando! – Acusei.


– Está bem, então... – Ele deu de ombros e emendou, mudando o assunto. – Você não está atrasada para sua aula?
– Eu não vou... E você? Não tem treino agora de manhã?


– Não. Futebol só na parte da tarde hoje... Você não devia faltar aula, Léo... Vai ser reprovada, não sabe disso?
– É o que pretendo... – Limitei-me a responder.


Depois do café eu tentei me distrair com uma leitura. Durante toda a manhã escutei meu irmão socando seu saco de areia no sótão. Parecia ter passado uma eternidade desde que eu ouvira aquele baque surdo no andar de cima.


A manhã terminava, eu já desistira de ler e pegara meu mp3. Ele, por sua vez, já havia descido, tomado banho e pelo silêncio, provavelmente estava se arrumando para partir para o campo. A campainha tocou insistentemente, quase sem educação. Eu não pretendia sair do meu quarto, e deixei para Pedro a tarefa de atender quem quer que fosse.


Alguns minutos se passaram até meu irmão abrir a porta com um humor completamente diferente daquele que vinha mantendo desde a madrugada.
– Seu professor está aí fora e quer falar com você!


Apesar dos fones no meu ouvido, eu pude escutar muito bem. Mesmo assim, desliguei o aparelho para responder meu irmão.
– Eu não quero falar com ele!
Pedro estranhou:
– Por quê?


– Porque eu não quero!
Seu mau humor pareceu ceder, mas não sua irritação:
– Tá! E o que eu digo para ele?


– Pode dizer isso! Ou pode dizer o que você quiser! Tanto faz eu não tô nem aí se você quer saber.
– O que foi que aconteceu, Léo? – A preocupação estampada em seu rosto.


– Não aconteceu nada, Pedro! Você não está atrasado para o seu treino?
– Por que você não conversa mais comigo, Léo? Você costumava me contar tudo...

Não era exatamente tudo. Os assuntos essencialmente femininos eu deixava para Dora mesmo, e ela era sempre receptiva. Mas eu poderia dizer que contava quase tudo. Inclusive sobre a minha primeira vez. Porém, desde que comecei a namorar o David, achei estranho compartilhar determinadas coisas com meu irmão, por causa da amizade entre os dois.


– As coisas mudam, Pedro...  – Resumi e mudei de assunto, enquanto levava a mão em sua franja. – Gostei do seu cabelo...
– Ah! Incomoda um pouco a visão... Eu já uso lentes, então... – Ele não esperava que eu lhe tocasse na altura da orelha e se encolheu.


Eu senti seu embaraço, e imediatamente recolhi meu braço.
– Bem... Preciso treinar... E dar uma resposta a seu professor. Até mais tarde, Léo...
– Obrigada... – Meu agradecimento não era apenas por ele levar o recado. Era por respeitar meu silêncio.


Quando Pedro deixou meu quarto, eu me tranquei para não ter que ver meu professor no momento em que ele abrisse a porta da entrada. Sabia que se Yuri me olhasse daquela forma obsequiosa, não lhe negaria nada, como nunca consegui negar. Eu fui tão fraca!


Ressentia-me pelo Pôr do Sol. Havia fomentado esperanças de voltar àquele lugar. A tristeza tornou a derrubar meu astral, sentia ainda mais por Ariel. Nada de observar seus passinhos vacilantes, ou receber seu sorriso puro ou ouvir aquele gritinho fino “tia Léo!”. Imaginar a possibilidade de não mais estar com ela era doloroso.


Eu não tinha dormido direito e minha cabeça estava a ponto de pifar. Pouco a pouco fui me deixando deslizar para o chão, arrasada pelo cansaço físico e pelo desgaste mental. Ali, jogada de qualquer jeito no carpete, adormeci.


Era noite quando acordei. Ótimo, agora certamente teria insônia e daí para frente seria um custo acertar meu relógio biológico novamente. Eu devia estar com a cara toda marcada da textura do tapete floral, onde me larguei. Fora o inchaço natural de quem está com o sono todo desregulado.


Após ter-me colocado de molho em sais de banho por exatamente 45 minutos, enrolei-me em uma toalha, voltei para o quarto e para os meus pensamentos. E eles me levaram até Nicole. Cheguei à conclusão que devia explicações a minha amiga, portanto teria que superar a vergonha e falar com ela. Yuri era da sua família e, por conseguinte, Sônia também. Nick teria que ser a pessoa certa para me aconselhar.


Por isso peguei o telefone e liguei:
– Nick! – Seu apelido saiu num quase soluço.
– Léo?! – Podia jurar que se não fosse o identificador de chamadas, ela não teria reconhecido. – Aconteceu alguma coisa?

– Eu queria... – Solucei. – Falar com você...
– Fala, Léo! Tá me deixando aflita! – Exclamou.


Perguntei já agoniada:
– A gente pode se encontrar?
– Claro que pode, amiga! Mas não dá pra você adiantar o que é? Só pra me deixar mais tranquila?


– Não vejo como, Nick! Tô indo pr’aí!

Não dei oportunidade para que ela continuasse a perguntar. Desliguei sem nem ao menos despedir-me direito. Vesti qualquer coisa e parti para sua casa.


Ainda na porta de sua casa, abracei-a com remorso e vergonha.
– Desculpa, Nick!
– Léo! O que deu em você?


Nick sugeriu que conversássemos em seu quarto. Contei minha versão sobre o Pôr do Sol, pois estava mais que claro que ela já devia ter escutado a versão de Yuri. E então procurei me acalmar antes de começar a contar sobre meu encontro com Sônia e Ariel na pracinha.


– Eu já disse que Yuri não fala muito sobre seu casamento, não é? Eu não morro de amores pela Sônia, mas não a conheço de fato. Ela é sempre muito ausente, tem um trabalho que lhe consome tempo demais. Também está volta e meia viajando por conta disso.


– Nick! Você me conhece, então seja sincera! – Quase implorei ao concluir. – Acha que eu estava flertando com seu primo? Acha que posso ter ido tão longe?
– Ai, Léo! Eu só estive com vocês dois uma vez, naquele almoço, como posso avaliar?! Não posso julgar você!


– Ele é seu primo! E é casado! Ariel é sua priminha, Nick! – Lembrar disso, apenas piorava toda a situação.
– Ele é lindo! Inteligente, sedutor e atraente. De quantas desculpas você precisa? Léo, presta atenção! Você me disse que ele te responderia, certo? Apenas vá lá e faça as perguntas! Pare de se torturar!


Nicole convidou-me para dormir em sua casa, mas preferi não aceitar. Eu precisava colocar minhas idéias no lugar. Fui até lá porque precisava de respostas e não consegui nenhuma. Não entendia porque minha amiga fazia tanta questão que eu ainda falasse com Yuri. Ela deveria ficar do lado da Sônia, não deveria?


Quando cheguei, fui direto para o meu quarto, com a pretensão de dormir para tentar acertar meu cronômetro interno. Meu irmão deve ter me escutado chegar, pois entrou logo atrás de mim.
– Eu não sei onde você estava! Mas seu professor voltou aqui para falar com você! Não vai mesmo me dizer o que está acontecendo?
– Outro dia, Pedro... Hoje não.


Precisei de mais coragem do que a de costume para assistir as aulas de terça feira. Eu não procuraria Yuri, como Nicole sugeriu, mas não poderia brincar de gato e rato com ele para sempre.
– Você não regula bem não, né, Léo? – Tatá perguntou quando saíamos da sala, após o último tempo daquele dia.


Augusta e Geórgia caminhavam atrás de nós, mas a uma distância segura. Meu amigo prosseguiu com seu sermão:
– Vai se deixar reprovar?! Pra quê? Ninguém vai parar de falar do seu caso com o Yuri por causa disso!
– Eu não tenho nenhum caso com o Yuri, Tatá! Você sabe disso! É só que não tenho vontade nenhuma mais de assistir aula de Sociologia!


– Foi forma de falar, você entendeu! – Ele parou de repente, como se tivesse feito a descoberta do século. – Ou será que o seu encontro com a Sônia tem alguma coisa a ver com isso, e você não me contou?
– Pára de viajar, Tadeu... – Mas ele não estava realmente tendo nenhum devaneio.


– Léo, você se fecha tanto, se tranca de uma forma... Que eu fico preocupado de um dia desses, você não encontrar mais as chaves. – Além de me conhecer de uma forma que às vezes eu mesma não conseguia, meu amigo era sempre compreensivo. Por isso desconversou ao sairmos para o pátio. – A propósito, reparei que está com o gloss novo... Então, almoço no Bumper?
– É, pode ser... Respondi desanimada.


No momento em que nos viramos para chamar as meninas dei de cara com Yuri. O susto fez meu coração dar uma pausa preocupante, para depois voltar acelerado.
– Porque está fugindo de mim?

Engoli em seco.


Tadeu sumiu do meu lado mais rápido do que uma piscada de olhos. Novamente eu estava muda. Eu sabia por que estava fugindo. Mas como eu poderia dizer? Como se diz “tenho um medo irracional da pessoa que me torno quando estou com você”, para alguém como ele?
– Será que a gente pode conversar?


– Porque está calada desse jeito, se eu sei que tem um monte de perguntas que gostaria de fazer para mim? – Ele quebrou o silêncio mórbido dentro do carro, a caminho de algum lugar.
– Se você sabe quais são as perguntas, porque não me poupa disso tudo?


– Não, eu não sei quais são as perguntas, Léo... Eu posso até imaginar algumas, mas prefiro que você coloque para fora toda a angústia presa aí dentro de você.

Voltei a me calar. Eu tinha medo de falar, medo de me expressar mal, medo dele me interpretar de forma errada. Medo dele me convencer do quê quer que desejasse.


Yuri teve paciência para esperar. Eu estava de cabeça baixa e só me dei conta que estávamos na Praia Pequena quando ele estacionou o carro. Meu professor abriu a  porta do meu lado como de costume, mas eu mal conseguia me mexer
– Ao menos me dê uma dica de por onde posso começar... – Pediu assim que saltei.


– Eu conheci a Sônia! – A frase saiu quase cuspida. Eu não conseguiria falar de outra forma.
– É, eu sei...

Ele disse com tanta naturalidade que cheguei a ter raiva.


– Sabe, é? – Debochei. – Ela contou? Pensei que o diálogo não fosse fácil entre vocês! De onde foi que tirei isso? Ah, já sei! Foi você quem falou!
– Foi Ariel quem me contou, Léo... E não menti sobre minha dificuldade em conversar com a Sônia.


– Você me deixou pensar que sua esposa era uma megera, desapegada de você e da família! Porque permitiu isso?
– Desculpe, Léo... Mas foi você que criou essa imagem, eu nunca disse isso da Sônia.


– Por conta da forma como sempre se referiu a ela. A cara de tristeza e desalento que você sempre fazia!
– Minha decepção nunca foi com a Sônia, Léo...


Lá estava a mesma expressão novamente. E eu sabia que ela me faria fraquejar.
– É difícil pra mim, Yuri... Você não me deve satisfações, que direito eu tenho de te perguntar?
– Fui eu quem lhe disse que podia... Portanto você tem.


Eu estava mais confusa do que quando comecei.
– Então por que o casamento parece algo tão pesaroso para você? E Por que entre tantos alunos, você...
– Resolvi pegar no seu pé? – Ele completou com humor.


Porém voltou a ficar sério antes de continuar:
– Eu tenho o péssimo hábito de tentar resolver os problemas ao meu redor. É a minha forma de não pensar no fracasso de não conseguir resolver os meus próprios, Léo. Nicole te adora, e me falou de você quando eu lhe contei da vaga de substituto. Não precisei de mais de meio minuto para entender a intenção da minha prima, e nem precisei de mais de um segundo pra gostar de você. Tem idéia do quanto é especial?


Para o meu pai, sim eu sabia que eu era. Para Pedro e Dora também. Mas não para Yuri.
– Você tem um magnetismo tão grande que atrai até quem não te gosta, Léo... Mas não foi isso que me levou a ser tão insistente. Na verdade isso era o único motivo pelo qual eu não deveria, mas... Me intrigou seu desapego, sua falta de motivação e sua falta de paixão. Para mim, essas coisas estão aí dentro – ele apontou meu peito – em algum lugar...


Era muita informação para minha cabeça. Virei-me e caminhei em direção a praia. Yuri me acompanhou continuando sua explicação:
– De forma tola, ou mesmo pueril, eu acredito que possa mudar o mundo... Irônico até, visto que não consegui fazer funcionar nem meu próprio casamento. O Pôr do Sol me dá algum conforto. Mas sabemos que nunca vai ser suficiente, não é?


Como ele fez uma pergunta, eu me atrevi a me pronunciar:
– Mas... O que não está funcionado no seu casamento?
– Eu falhei na tentativa de manter o amor de Sônia por mim, da mesma forma que deixei o meu por ela se apagar. Não há como um casamento funcionar sem essa peça chave, porque essa ausência acaba provocando defeito em várias outras partes do mecanismo...


– A falha não pode ter sido só sua, Yuri... – Disse sem conseguir encará-lo.
– Sim, Sônia tem a sua parcela de responsabilidade e talvez se sinta igual a mim, mas o que importa apontar culpados? Está morto.


Pensei por quase dez segundos antes de me manifestar novamente:
– Eu... Não entendo nada de relacionamentos, menos ainda desse tipo de amor, mas... Se não funciona... Porque insistir e continuar investindo energia em algo que não tem solução. É por causa de Ariel?


– Não por causa dela, embora ela esteja envolvida na minha desculpa egoísta. Seria hipocrisia demais eu dizer que minha filha precisa ser criada num lar completo, se completo de fato, ele não voltará a ser. Eu é que não consigo abrir mão de mais qualquer minuto que tenha com ela. Eles já são insuficientes para mim. Não consigo me imaginar chegando em casa e não vê-la, mesmo que seja completamente adormecida em seu berço.


Havíamos chegado à beira do mar, e eu nem percebi que estava afundando os pés na areia com minhas lindas sandálias prateadas.
– Existem alguns outros aspectos que também me desestimulam em relação ao divórcio... Como admitir publicamente meu fracasso... Você deve estar com fome... – Mudou subitamente o assunto. – Venha, vamos catar alguma coisa pra comer...


Yuri me levou ao Bucsky, seu restaurante preferido e, segundo me disse, onde fez o pedido de casamento a Sônia. Ele passou todo o almoço contando essa parte de sua vida para mim. Eu não tinha certeza se iria gostar de ouvir, mas achava que ele merecia minha atenção. Além do mais, se nem para Nicole ele havia confessado, imaginei que aquela talvez fosse a primeira vez que ele estivesse falando abertamente sobre o assunto.


Eu já sabia acerca de sua relação conturbada com seu pai, mas não sabia que Yuri havia saído de casa numa briga onde este profetizou seu fracasso profissional e financeiro. Menos ainda que desaprovasse seu relacionamento com Sônia, por ela não pertencer a uma família da alta casta de Enseada Belladonna, embora fosse emergente na sociedade. Uma família “nouveau riche”.


Yuri contou que se conheceram e se apaixonaram na faculdade.
– Ela amava esportes radicais, e cursava educação física... O negócio de Sônia era saltar de bung jump ou voar de asa delta. Eu fiquei fascinado pela ousadia dela. Sinto uma culpa ainda maior por achar que ela abandonou os sonhos dela em prol dos meus.


Cada frase dele parecia uma surpresa reveladora para mim. E de certa forma, trazia alívio, pois desmistificava a figura que eu havia criado do meu professor.
– Hoje a Sônia é alta executiva e se enfia em roupas desconfortáveis e sapatos torturantes. Talvez ela nem odeie isso. Mas me parece bem diferente da mulher que ela costumava ser. 


– Ela é uma boa mãe, mas trabalha demais, por isso é muito ausente. E tenho certeza que sofre por isso, apesar de não falar... Mas foi ela quem optou, já que meu salário não poderia nunca dar o conforto que o dela proporciona para nossa família. Ariel está com seu futuro garantido por conta disso. Acredito que as coisas começaram a desandar aí.


Eu entendi que Yuri não conseguia deixar de pensar que Sônia também o achava responsável pela não realização de seus projetos pessoais. Também entendi que não houve um debate, um acordo, e que cada um tomou sua decisão sem consultar o outro, sempre achando que estavam escolhendo aquilo que fosse melhor para todos.


– E o sexo?
Eu mesma não acreditei que perguntei isso. Saiu de supetão, mas àquela altura, não sabia mais se havia necessidade de algum constrangimento. Entretanto, senti a temperatura do meu rosto subir, então eu devo ter corado.


Yuri abriu aquele sorriso de lado que fazia qualquer mulher derreter.
– Eu sou hóspede em minha casa há mais de um ano. Durante algum tempo, mesmo com o silêncio imperando em nossa relação, eu ainda procurei pela Sônia. Mas os problemas não se resolvem na cama, Léo... E depois de ser rejeitado algumas vezes meu orgulho falou um pouco mais alto e eu mudei de quarto.


Após aquela pergunta eu me senti completamente à vontade para fazer qualquer outra:
– O que Sônia sabe a meu respeito? Ela nunca perguntou de mim para você?
– Sônia só sabe o que Ariel possa eventualmente ter falado de você... E obviamente a versão da Edna de nosso abraço aquele dia na pracinha... Ela nunca chegou a me perguntar.


– Então porque ela me tratou tão... Bem?!
– Eu não sei o conteúdo da sua conversa com a Sônia. Nem a forma que ela lhe tratou, Léo, mas duvido mesmo que ela fosse rude, não é o jeito dela, mesmo que sentisse ciúmes, o que não consigo imaginar! É mais fácil acreditar que ela torça por um envolvimento meu, e assim algum de nós possa tomar uma iniciativa quanto à separação.


– Isso parece tão... Cruel!
– Pode ser, mas... O que não é cruel em minha postura também? – A tristeza estava de volta em seu olhar.


Aquela expressão nunca me deixava indiferente, e repousei minha mão sobre a dele na mesa. Eu desejava dizer-lhe que não era possível sustentar uma relação daquela maneira, que ele teria que parar para conversar com a esposa de qualquer maneira para resolver aquela situação, mas que vivência eu tinha para dizer isso? Então apenas prestei solidariedade, em silêncio.


Em toda minha vida eu só tive relacionamentos superficiais. O mais longo deles havia sido com David. Mesmo assim não consigo me lembrar de nossas conversas. Não me lembro de ter lhe falado sobre meus medos, meus anseios, meus sonhos nem frustrações. Não me lembro de diálogo algum. Apenas do sexo. Dos beijos ardentes, das formas de seu corpo. Tudo perfeito, sempre, mas era só.


– Quer me perguntar mais alguma coisa, Léo?
– Não... Eu só gostaria de ter algo pra te dizer... Mas...


– Não se preocupe com isso... Você quer alguma sobremesa? O “petit gateau” daqui é conhecido mundialmente...
– Não, Yuri... Obrigada... Eu estou mesmo satisfeita.


– Vou pedir a conta e te levar pra casa, então, está bem pra você?
– Está ótimo pra mim...


No automóvel, durante o percurso de volta, eu estava calada outra vez e não era por vergonha.
– Decepcionada? – Meu professor me perguntou sem tirar os olhos do caminho.
– É claro que não, Yuri...

Eu só estava ainda um pouco atônita.


Ao chegarmos à frente da minha casa, e depois de me abrir a porta do carro, ele voltou a falar:
– Léo... Sei que você não me fez essa pergunta, mas preciso respondê-la para você. Eu seria um mentiroso se não admitisse que me sinto muito atraído por você. Por todas as circunstâncias, eu sei o quanto isso está errado, e o quanto isso é antiético, mas... Além da pessoa maravilhosa que vejo em você e do ímã natural que eu já mencionei... Você é linda! E exala tanta sensualidade! Só que... Meu Deus, você é ainda é uma menina!


Meu professor pegou ar e segurou meus ombros antes de continuar:
– Então eu te juro, e necessito que isso fique bem claro pra você, eu nunca fiz nenhum convite, nem nunca toquei em você com a intenção de te seduzir... Sempre, tudo que fiz e falei foi para fazer você se encontrar e se enxergar como a pessoa especial que é...


A minha feição devia ser de total perplexidade, eu nunca esperaria uma declaração daquelas. Até ali, eu estava acompanhando seu olhar com o meu enquanto ele prosseguia:
– Eu não vou mais te pedir que frequente minhas aulas... Nem te perguntar mais sobre isso. Apenas gostaria que você refletisse a respeito do que está fazendo com seu tempo e sua vida, Léo...


Fez-se silêncio e eu não sei explicar o que me levou a tomar tal atitude, mas a minha falta de lógica diante de Yuri já era mais que conhecida, então simplesmente não pensei em nada naquele segundo. Inclinei-me da direção dele, entrelacei meus braços em suas costas e o beijei.


Era exatamente o que eu entendia sobre não confiar em mim quando estava ao seu lado. Só voltei a raciocinar quando senti a proporção da reciprocidade do seu beijo, e me afastei.
– Me desculpa! – Pedi.


Não esperei uma reação nem uma resposta do meu professor, apenas corri para dentro de casa como a garota mimada que sempre fui. Eu havia estragado tudo. Queria jogar-me na cama e me acabar de chorar por ter cedido ao impulso mais idiota que eu já tivera em toda a minha vida. Nem me preocupei em saber se meu irmão havia sido testemunha da minha total insanidade.


Porém, ao entrar em meu quarto, fui interrompida pelo som do telefone. O identificador de chamadas acusava “número confidencial”, e eu normalmente deixava este tipo de ligação para Pedro atender. Mas o aparelho não calava indicando que provavelmente ele não estava em casa.


Tirei o fone do gancho e disse “alô”, ainda transtornada. Do outro lado da linha, uma pessoa cuja voz estava tão distorcida que não consegui identificar se era homem ou mulher esbravejou com rancor: “vagabunda!” e desligou a seguir.



2 comentários:

  1. Tatá rules, Pedro é gatão e a Léo às vezes me dá raiva! Concordo com ela sobre "o impulso mais idiota que eu já tivera em toda a minha vida".
    Mas daí receber um telefonema daqueles?! Aff... Tem gente que não tem o que fazer a não ser vigiar a vida dos outros!

    AMO!
    bjosmil! *.*

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  2. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk, concordo que foi um impulso idiota, mas nem posso culpá-la *¬*

    Pedro é T maiúsculo! hahsauhsuahsn queromuitoondearrumoum.com.br

    E sério mesmo, o que seria da Léo sem o Tatá...

    Sobre esse telefonema... Affff, sem comentários ¬¬"

    Obrigada, Mita!!!!!!!!!!!!!!!

    bjks!

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