terça-feira, 30 de novembro de 2010

XXVIII – Pôr do Sol

Somente quando voltei do laboratório no dia seguinte resolvi olhar meu celular. Havia uma quantidade exagerada de ligações não atendidas e outras tantas de mensagens de voz e texto. Como eu podia causar tanta preocupação assim nos outros?


Pedro sentou-se no sofá da sala, me fazendo achar que ele não sairia de casa.
– Você não tem treino nem aula? – Perguntei.
– Pedi dispensa de ambos. Tirei o dia para cuidar de você.

Eu poderia espernear, mas seria inútil, então eu dei de ombros.


Liguei para o meu pai primeiro. Avisei-o que me sentia bem melhor, mas assim mesmo havia feito todos os exames que me pediu, depois liguei para o Tatá para traquilizá-lo de que nada trágico havia acontecido. Não respondi o convite via SMS de Nuno, perguntando se podíamos sair para dançar na sexta, ainda estava com vergonha pelo meu comportamento desde a última vez que nos vimos.


Ainda havia algumas mensagens de colegas me perguntando sobre trabalhos acadêmicos e outras chatices, além de chamadas de números que não constavam na minha agenda, e eu não iria mesmo ligar de volta. Por último, algumas ligações de Nicole.


– Léo! O que aconteceu? Não consegui falar com você o dia todo ontem! – Minha amiga dispensou a cortesia dos cumprimentos que mandam a etiqueta.
– Ah, nada! Eu tive uma indisposição, só...


– Você faltou aula! – Era uma reclamação. E estava começando a me irritar.
– Olha, Nick, essa história de você e seu primo ficarem de ti-ti-ti a meu respeito está me dando nos nervos! Adote uma criança... Ou compre um cachorro! Já tenho mais gente do que o necessário tomando conta de mim!

Acomodado no sofá, Pedro sorriu com minha constatação.


– Ok, Léo... Você tem razão. Tá na hora d’eu parar de me preocupar com você, sabe?
Eu senti a mágoa por trás daquela declaração. Não pelo que eu havia dito. Nossa amizade era maior que isso, mas porque ela no fundo sabia que não podia bancar a minha mãe pra sempre.


– Eu reconheço seu esforço, Nick. Eu amo você. Mas acertando ou errando, eu quero caminhar sozinha. Mais que isso, eu preciso!
– Eu entendi, amiga... Também te amo... Por isso é tão difícil largar você de mão...


Não posso reclamar do dia que tive. Pedro não me deixou ficar entediada, apesar de estar de repouso, trancafiada em casa. Assistimos bons filmes, jogamos mahjong e eu só percebia o tempo passar nos momentos em que meu irmão interrompia a diversão para me obrigar a comer ou beber água.


Com exceção de “relacionamentos” e “futebol”, conversamos sobre os mais variados assuntos. Já era fim de tarde e estávamos discutindo alguma coisa sobre música quando a campainha tocou.
– Deixa que eu atendo. – Disse meu irmão.
– Ah, não... Finge que não tem ninguém, Pedro...


Na verdade eu não queria ter que tirar minha cabeça do seu colo. Estava tão confortável ali! Mas ele levantou assim mesmo, e para minha completa surpresa abriu a porta para Yuri.
– Boa noite, você deve ser o Pedro, irmão da Léo... Prazer eu sou Yuri, o...
– É, eu sei quem você é. – Ele interrompeu a apresentação, mal-humorado e Yuri educadamente fingiu não perceber.


Eu já me levantava do chão, quando Yuri perguntou:
– Eu poderia falar com sua irmã?
– Isso não depende de mim, não é?
Eu não compreendi a atitude de Pedro. Eu não estava costumava a vê-lo sendo mal educado com alguém, menos ainda como anfitrião. A única exceção havia sido aquela vez com o Nuno. Mesmo assim, na ocasião, ele não era o dono da casa.


– Olá, professor! Que boa surpresa a sua visita! – Cumprimentei Yuri de forma simpática.
– Desculpe aparecer assim, sem combinar... É que eu esperava falar com você ontem... Mas você não apareceu na aula...

Parado do meu lado, meu irmão bufou.


– Pedro, você não tinha um trabalho de Química Analítica para fazer?
Inventei uma desculpa para que ele pedisse licença e saísse da sala.
– É, tenho! – Ele respondeu ignorando o protocolo e já virando em direção ao seu quarto.


Meu irmão se fechou em seu cômodo e meu professor se voltou para mim:
– Acho que aborreci seu irmão...
– Eu me entendo com ele, Yuri... Mas... Desculpe ser tão direta... O que te traz aqui?


– Além de você ter faltado à aula outra vez? É que... – Ele parecia sem jeito para falar. – Eu tinha pensado em te levar para conhecer o Pôr do Sol hoje... Mas... Talvez você tenha outros compromissos...
– Não! Não tenho, eu só não estou pronta! Preciso vestir alguma coisa apropriada.


– Você esta perfeita assim, Léo. Eu te asseguro. Estamos em cima da hora... O sol não vai esperar...

Eu estranhei, é claro. E me perguntei se essa estranheza era por conta das teorias românticas de Tatá. Mas, se Yuri disse que eu estava pronta, então eu devia estar.


– Pedroooooo! – Gritei já fechando a porta atrás de mim, pois ele tentaria me impedir se eu fosse até seu quarto, avisá-lo de meus planos. – Vou sair!

Sabia que meu irmão estava preocupado com minha saúde, mas também tinha certeza que estaria segura nas mãos de Yuri.


Nem nas teorias mais esdrúxulas, Tadeu teria imaginado algo assim. Aliás nós não chegamos nem perto. Depois de mais de uma hora de viagem estávamos em um bairro que parecia ter sido esquecido por Deus e o resto do mundo. Um bairro sem cor. Se Yuri não fosse primo de Nicole, e se eu não a conhecesse tão bem, eu poderia achar que estava sendo sequestrada.


Quando Yuri finalmente estacionou o carro, eu me deparei com uma construção diferente de todas as outras. Vários espaços independentes em diferentes andares. Coloridos e bem conservados. No nível do solo, havia uma horta. Não pude deixar de notar os diversos dispositivos de captação de luz. Era um lugar auto-sustentável.

Percebendo meu espanto diante de todas aquelas informações, o professor me tirou do meu completo estado de paralisia:
– Estamos alguns minutos atrasados. Me acompanha? – Ele me estendeu sua mão.
– Arram!! – Balbuciei idiotamente.


Levada pelas mãos por Yuri, eu caminhei em direção ao lote, meu olhar observando cada detalhe do lugar, tentando compreender o que era aquela ilha no meio de um local tão carente.


Quase tomei um susto quando, na entrada, me deparei com uma garota que usava óculos e aparelho nos dentes. Ela gesticulava aturdida.
– Já fiz a chamada da sua sala e está todo mundo aí. Mas a Helena não apareceu ainda, Yuri... Eu só posso ficar mais meia hora, porque tenho prova hoje... O que vamos fazer?


– Andressa, esta é a Léo, minha aluna de sociologia na UFEB. – Yuri educadamente me apresentou antes de respondê-la.
Acho que a garota ainda não havia notado que ele estava acompanhado.
– Ah, oi... – Ela respondeu encabulada.
Mesmo assim, não gostei da forma como me fitou, de cima a baixo, como se procurasse alguma justificativa para a minha presença ali.


– Por favor, querida, você pode ficar no lugar da Helena então, nesta meia hora que tem? Sei que não é sua função, mas quebre este galho para mim enquanto penso em alguma coisa, pode ser?
– Claaaaro... – Andressa respondeu melosamente e hipnotizada pelo olhar do professor.


Yuri me chamou e eu senti os olhos da garota me observando enquanto eu o seguia escada acima até a uma daquelas salas que mais pareciam contêineres. Aquilo tudo era novo, misterioso, e portanto excitante. Mas a falta de uma explicação estava me deixando tensa.


Paramos de frente para a porta, mas antes que ele a abrisse eu indaguei:
– Você não vai me dizer absolutamente nada? É algum tipo de charada?
– Calma, Léo... Você vai entender muito rapidamente. Vamos. Entre...


Era uma apertada sala de aula. As carteiras estavam todas ocupadas com pessoas de diferentes idades, mas todas tinham a aparência muito humilde.
– Trouxe visita hoje, professor? Quem é a moça bonita? – Perguntou um senhor.
– Ela também é minha aluna, Naércio. Mas em outra escola. Hoje ela veio me ajudar... E conhecer vocês...


– Então seja bem vinda, gata! – Falou alguém do fundo da sala que não consegui identificar se era homem ou mulher.
– Mas as carteiras estão todas ocupadas, onde é que ela vai sentar? – Naércio voltou a perguntar.


Um garoto que devia ter por volta da minha idade, mas era bem magricelo respondeu:
– Se ela quiser, eu divido meu lugar com ela...
Yuri respondeu com seu sorriso cordial:
– Pode deixar, Adalberto, mas a Léo vai sentar lá na frente do meu lado, ok?


– Léo?! Isso é nome de mulher?! – Exclamou uma jovem senhora quase na minha frente, ao mesmo tempo em que as pessoas começaram a falar, gesticular e cochichar. Quanto a mim, já estava arrependida de ter saído de casa.


– Gente, gente! – Yuri fez-se ouvir, com um tom mais alto, porém sem gritar. – Já estamos atrasados e vocês estão assustando a minha aluna, o que é isso?

As pessoas na sala calaram-se instantaneamente.


Yuri me colocou sentada de frente para a turma e começou sua aula. Eu pude matar a saudade que tinha de vê-lo em ação. Era sempre tão bonito! Ele falava com tanta empolgação que você juraria que não poderia morrer sem aquela informação. Estava mais animado e expressivo do que na UFEB, e sem sombra de dúvidas os alunos dali eram bem mais dedicados, pareciam nem piscar, enquanto acompanhavam os trejeitos do professor.


Não percebi o tempo passar até a porta se abrir mostrando a garota que havíamos encontrado lá embaixo.
– Yuri! Desculpa interromper... Mas a Helena não chegou e não posso esperar mais... Não quero ter que fazer segunda chamada...
– Ah, Andressa! Eu que peço desculpas! Esqueci completamente!

Ele de fato, parecia sempre entrar noutra dimensão quando estava lecionando.


– Já sei! Léo! Você pode fazer esse favor para a gente?
– Eu?! – Eu exclamei surpresa.
E essa também não era a minha única indagação. Que favor? E porque o “para a gente”?


Yuri não me respondeu, apenas voltou-se para a turma:
– Gente, parece que tá uma confusão só hoje! Vamos fazer nosso intervalo um pouco mais cedo? Preciso levar a Léo lá no CCPDS.
– Vai na fé, Profe!!! – Alguém apoiou.


Meu mau pressentimento só aumentava conforme seguíamos em silêncio para algum lugar. Eu nem estava prestando atenção ao caminho.
– Não é nada demais, não precisa ficar nervosa...
– Quem está nervosa? – Fingi pouco caso, mas obviamente dava para sentir a tensão até mesmo na minha voz.


Paramos em frente à porta de outro contêiner e Yuri olhou para mim.
– É aqui. Escuta... Eu juro que vou tentar terminar a aula um pouco mais cedo mas gostaria de passar alguma coisa para eles ainda.
– O que é esta sala?


Meu professor abriu a porta e eu quase tive um chilique.
– De jeito nenhum! – Fui categórica ao perceber do que se tratava. Um cômodo repleto de crianças que deviam ter entre 3 e 11 anos. Provavelmente Helena era babá, recreadora, educadora, ou algo do gênero.


– São filhos das pessoas que conheceu há pouco e mais algumas espalhadas por outras turmas. Teremos que suspender o restante das aulas hoje, se você não puder fazer esse favor.
– Mas... Eu nem deveria estar aqui! Se eu não tivesse vindo... Vocês suspenderiam da mesma forma, não é?


– É, mas acontece que você está! Não acha que isso quer dizer alguma coisa?
– Sim, quer! Quer dizer que nunca mais vou dar ouvidos a sua prima! Yuri, você não está entendendo... Crianças não gostam de mim!


– A Ariel adora você.
– Por que... Ela deve ser de outro planeta! É sério, Yuri, é que você nunca viu! Mas elas choram... Ou me chutam... E... Eu não sei! Eu nem sei o que falar para elas... Eu não sei lidar com isso...


Yuri soltou um suspiro desanimado antes de se virar e dizer:
– Está certo, vou dispensá-los... Aguarde aqui que eu já volto...

Eu não sei o que me deu. Não consegui suportar aquela expressão de tristeza em seu rosto.
– Espera! Professor!


Ele voltou para me escutar e se não fosse minha cabeça baixa por não conseguir encará-lo naquele momento, eu poderia jurar que o seu sorriso havia voltado fazendo com que aqueles olhos esmeralda brilhassem ainda mais.
– O que eu preciso fazer?


Pisei na sala com os olhos fechados e o coração quase na goela. Esperei ser recebida com gritos e bolinhas de papel. Mas não foi isso que aconteceu. Quando abri os olhos, as crianças estavam em silêncio olhando curiosamente para mim.


Permanecemos assim alguns segundos até uma garotinha resolver se manifestar:
– Cadê a tia Helena?
Ainda receosa, eu respondi:
– Ah! A tia Helena não pôde vir... Então... Pediram que eu ficasse no lugar dela... Tudo bem pra vocês? É só por hoje...


Julguei que “tia” Helena devia ser ótima com eles, porque nenhum escondeu a reação decepcionada quando dei a notícia.
– Mas... Se vocês me disserem o que gostam de fazer... Quem sabe a gente não consegue se divertir juntos também?


No começo foi uma algazarra. Todas as crianças falavam juntas, e não se entendia nada. Eu tentei ser prática. Criei pequenos grupos com crianças na mesma faixa etária e escolhemos as atividades de acordo com a opinião da maioria. Em pouco tempo quase todos estavam entretidos com alguma coisa.


Entre todas as crianças, um garoto me pareceu deslocado. Era um menino gordinho de pele negra com cabelos crespos e desarrumados. Usava uma roupa que apesar de limpa, parecia bastante usada. Não participava de nenhuma atividade e carregava um semblante abatido.


Eu ia perguntar por que não estava enturmado, mas uma voz fina me interrompeu:
– Tia!
Era uma menina magra e pálida, de cabelos castanhos muito lisos, porém desleixados. A franja escorria sobre rosto, escondendo os olhos que eram da mesma cor.


– Ah... Oi... – Eu respondi sem graça. – Você precisa de alguma coisa?
Eu temi que ela fosse pedir para levá-la ao banheiro, ou algo assim, mas estava enganada.
– É que... Eu queria saber... – Eu notei que sua curiosidade superava o seu constrangimento e cheguei a sentir inveja dela por causa disso. – Você parece aquelas moças que a gente vê na TV... Você é? Da TV?


Eu sorri.
– Não... Eu não sou modelo, nem atriz, se é o que quer saber...
– Então como você faz? Pra ficar assim?


Eu não entendi.
– Assim como?
– Ah, tia... Assim... Você é tão linda que nem parece de verdade. – Ela disse tocando minha pele, como se quisesse provar sua teoria.


Eu achei graça, mas segurei o riso. Eu não conhecia nem um pouco a realidade daquelas crianças.
– Me ensina? – A menina emendou de repente.
– Ensinar o que? – Perguntei confusa.


– A ficar assim...
A pergunta da garota me pegou desprevenida. Eu até poderia fazer alguma coisa com o pouco dos cosméticos básicos que sempre carregava comigo, mas aquele dia, eu sequer tinha trazido minha bolsa, tamanha foi minha pressa ao sair de casa.
– Um minuto... – Pedi ao perceber uma penteadeira no canto.


– Não tem nada aí, tia... – A menina me avisou quando me viu remexendo as gavetas.
– Temos escovas e grampos... Nunca subestime o poder de escovas e grampos! Venha, sente-se aqui... – Chamei.


A menina me atendeu e durante um longo tempo, eu brinquei, alisei e penteei seus cabelos como costumava fazer quando tinha aquela idade, com as minhas Barbies e Bratzs.
– Tia, qual o seu nome? – Ela de repente interrompeu minha viagem nostálgica.
– Léo...


A guria engasgou ao tentar engolir uma gargalhada.
– O que foi? – Perguntei sem muito humor.
– Desculpa... É um nome estranho para uma menina.


– É um apelido. Eu não gosto do meu nome. – Dei aquele assunto por encerrado antes que ela perguntasse meu nome real, aquele mesmo, impresso contra a minha vontade na minha carteira de habilitação. – Pronto, terminei. Você já pode virar.


Apesar da mudança considerável, eu não pensei que fosse causar tanto impacto.
– Oh! Está perfeito!
Eu queria dizer-lhe que ainda não, mas que poderia ficar, se ela usasse os xampus e os cremes corretos. Mas eu nem acreditava que estes fossem itens da lista de compras da sua casa.


Ela desceu da penteadeira e se debruçou em mim, fazendo com que eu me curvasse para receber seu abraço agradecido. Minhas reações saíam desajeitadas, eu não estava preparada para nada daquilo. E era só um penteado afinal.
– Obrigada, tia Léo! Eu adorei!


A menina voltou para o grupo eu voltei minha atenção para aquele mesmo garoto que ainda permanecia isolado dos demais.
– A tia Helena abandonou a gente? – Perguntou baixinho segurando o choro, e tentando não ser ouvido pelos outros, quando eu cheguei perto dele.


– Ah, não! Certamente que não! – Respondi sem nem mesmo saber a verdade. – Porque ela faria isso?
– Não sei... Não devo ser bom. Se até minha mãe me abandonou, porque tia Helena ia gostar de mim?
Eu engoli em seco, enquanto me questionava como deixei Yuri me convencer de estar ali.


– Errr... Como se chama?
– Pedro... – Ele respondeu apenas.

A coincidência dos fatos me chamou a atenção. A frase do meu professor – “Não acha que isso quer dizer alguma coisa?” – voltou a minha mente. Eu detestava constatar que ele tinha tanto poder de persuasão sobre mim.


O pensamento me deixou tonta e eu só encontrei uns caixotes para me sentar. O garoto achou que era um convite e se empoleirou em meu colo. Pela segunda vez que eu era surpreendida com a reação daquelas crianças. O que tinha dado nelas? Eu havia fracassado na tarefa de cuidar de mim mesma e de cuidar do meu irmão adulto, como cuidaria daquele menino?


Respirei fundo e tentei ser coerente.
– Eu... Vou te contar uma história... – Ensaiei. – Sabia que você tem o mesmo nome do meu irmão...
– É sério?


Mostrando-se interessado, o garoto deu um pulo do meu colo para me encarar enquanto eu contava:
– É... E quer saber outra coisa? Eu também não cresci com a minha mãe.
– Ela também foi embora, tia?


– De uma forma diferente, mas foi. As coisas devem acontecer por alguma razão. Por que se ela não tivesse ido, eu também não teria meu irmão...
– Eu não entendi nada, tia!


Achei graça da confusão que causei e acabei por falar um pouco da história de meu irmão. O garoto contou a parte que sabia ou se lembrava da dele e pude perceber as semelhanças entre elas. Mas a vida não estava sendo tão generosa com a família do garoto quanto foi para a de Dora. E não havia como explicar os motivos disso.


– Então, Pedro... No fundo, o importante, é pensar nas pessoas que ficam... – Concluí. – As que te amam, as que te dão carinho. É pra elas que sua atenção tem que voltar. É a elas é que você tem que dedicar. Pode ser seu pai, sua tia, sua avó, ou seu gatinho...


Em um gesto rápido, o pequeno Pedro escalou o caixote para alcançar minha bochecha com um beijo estalado.
– Você tá certa, tia!
Mas uma vez eu estava atônita e sem reação.


Com o pouco que vivenciei aquela noite, compreendi que a tal da “tia” Helena não precisava ser nada excepcional, como eu havia pensado a princípio. Era apenas alguém que estava ali, disposta a dar um pouco de si, para quem não possuía quase nada.


A porta se abriu mostrando um Yuri sorridente.
– Está pronta?

As perguntas de Yuri volta e meia me confundiam, sempre com seus sentidos dúbios. Pronta para o quê?


– Já podemos ir... – Ele completou.
As crianças começaram a sair da sala para encontrar seus responsáveis do lado de fora. Despedi-me com acenos por elas retribuídos. Foi uma experiência diferente, estranha, porém gratificante.


– Eu não queria ir embora agora, se não se importa, professor...
– Não?! – Ele indagou com espanto.


– Nós chegamos atrasados e eu não pude conhecer o local. Sei que já escureceu mas gostaria que você me mostrasse o Pôr do Sol... Quer dizer... Se estiver com tempo...
– Sempre tenho tempo pra você, Léo.


Meu coração deu um pulo com a surpresa daquela resposta. A minha coragem nunca sobrepujava minha curiosidade e isso me enchia de raiva, por eu não conseguir perguntar o porquê. Mas dessa vez eu talvez até tivesse receio de ouvir. Yuri estava parado esperando que eu falasse alguma coisa. Há algum tempo eu vinha tendo coerência ao conversar com ele e temi não conseguir mantê-la agora.


– Desistiu? – Perguntou percebendo minha prostração. – Ou eu te deixei constrangida?
– Desculpa, Yuri. Tenho uma dificuldade incrível de manter minha lógica ao seu lado. Mas acho que isso não chega a ser uma novidade pra você.


Ele sorriu e me chamou novamente:
– Então vamos? Eu já disse que responderia suas perguntas. Mas não tenho bola de cristal. Você vai precisar fazê-las para mim.


Saímos para o pátio, e Yuri me mostrou cada canto do Pôr do Sol. Contou que o local foi todo construído em sistema de mutirão pelos moradores daquela comunidade, em conjunto com os idealizadores do Projeto. Muitos deles ainda trabalhavam na horta, na manutenção dos equipamentos, faxina e etc. Explicou que as aulas só aconteciam após o crepúsculo, porque era horário disponível da maioria daquelas pessoas, daí o nome escolhido para o Projeto.


Sentamos em um dos bancos, depois de rodar toda a instituição.
– Como você viu, eu dou aula de Ciências Sociais, para turmas que já foram alfabetizadas... Aqueles que querem saber um pouco mais do que só ler e escrever.
– Mas você falou sobre tanta coisa, Yuri... Até filosofia...


– Estou aqui para ensiná-los a pensar sozinhos, Léo... Não para enchê-los de informações que talvez nunca usem. Prefiro falar sobre aquecimento global, sobre a importância da consciência ecológica, sobre coletividade, do que explicar a diferença entre serrado e pradaria. Prefiro ensiná-los a votar, instruí-los sobre seus direitos, do que fazê-los decorar datas...
– E todos que trabalham aqui são voluntários?


– Absolutamente todos. Recebemos ajuda de algumas ONGs e algumas poucas doações de empresas. Mas a instituição é bem auto-suficiente, como você pode ver...
– Você vem todo dia? Por isso Ariel está quase sempre dormindo quando você chega em casa, não é?


Ele apresentou uma feição desolada e suspirou. Devia ser uma escolha duríssima. Era impossível ficar indiferente nas situações em que isso acontecia, e eu o envolvi.
– Ariel tem tudo. – Ele disse apenas, como justificativa.
– Tenho certeza que tem, Yuri...
Mas minha certeza se baseava apenas no que pude ver, e não vi muito. Porém, por experiência própria podia dizer que Ariel jamais esqueceria dos momentos juntos, e nem de todo o afeto que pude testemunhar.


Yuri aceitou minha acolhida, mas não por muito tempo. Logo levantou a cabeça soltando-se dos meus braços.
– Vamos? Está ficando tarde, mesmo para você. – Piscou.


Não falamos absolutamente nada durante o caminho de volta, apesar de todas as perguntas que eu ainda queria fazer. Eu quis dar-lhe espaço, afinal ele sempre foi falador, mas seu abatimento de alguma forma me inibiu. Também não pude me eximir da culpa de ter tocado em um assunto tão delicado.


Quando paramos em frente a minha casa, pensei em sair do carro dando apenas um tchau sorridente, mas meu professor foi mais rápido na clara intenção de abrir-me a porta e se despedir.
– Muito obrigado, Léo! – Ele disse me encarando, assim que me pus de pé.


– Tudo bem... Sabe, eu nunca estive num lugar destes, aliás! Acho que nunca estive no meio de pessoas tão diferentes da... – Eu parei tentando encontrar uma palavra que não fosse ofensiva.
– Sua classe? – Ele completou em forma de pergunta. – Não fique constrangida. Eles compreendem.
Claro. Quem não compreendia era eu. Daí o meu constrangimento.


Seu semblante adquiriu um ar mais sério, porém ainda terno e disse, olhando no fundo dos meus olhos:
– De verdade! Você não sabe a importância do seu gesto para aquelas pessoas... Nem para mim!


Yuri me abraçou e eu engasguei. Talvez eu suspeitasse da importância para o pessoal do Projeto, mas para ele?
– Você é especial, sabia? – Ele falou perto demais do meu ouvido. – Precisa se convencer disso.
Deus! Era um homem lindo e envolvente, seria perfeito se não fosse casado.


O que eu estava pensando?! Isso só podia ser efeito daquele dia completamente atípico para mim! Resgatei meu autocontrole de dentro das minhas entranhas e tentei não gaguejar:
– Especiais são vocês que fazem aquele trabalho maravilhoso no Pôr do Sol!


Yuri afrouxou seus braços e sorriu.
– Boa noite, Léo... Espero ver você na segunda...


Entrei correndo e animada pela casa. Estava louca para compartilhar com meu irmão a experiência que tive, e fui direto para seu quarto. Estava vazio. Ainda pensei em procurá-lo no sótão, mas eu já tinha certeza que ele não estava ali e desconfiava do motivo. Porque seria tão tola a ponto de achar que Pedro estaria me esperando sorridente depois do que eu havia feito?


Ele abrira mão de sua programação para ficar comigo e eu o larguei em prol da minha curiosidade. Eu nem consegui ficar arrependida, por tudo que pude conhecer. Peguei o celular com a intenção de ligar para ele. Queria pedir desculpas e explicar-lhe meus motivos, mesmo acreditando que eles não seriam suficientes para justificar minha atitude.


 Eu sou uma péssima irmã, ele já sabia. Disquei o número de Pedro, e descobri que ele não queria ser encontrado quando ouvi o som abafado de “Black” vindo de dentro de sua mochila na estante, enquanto meu iphone me dava o sinal de uma chamada que ninguém atendia.


Desliguei, e a música parou em seguida. Era a preferida dele desde que a ouviu pela primeira vez. Eu a achava triste demais, como quase tudo que conhecia de Pearl Jam.


Disposta a me desculpar de qualquer maneira, decidi esperá-lo voltar em seu quarto. De banho tomado e pijamas, sentei no tapete e recostei-me em sua cama, calculando que seria mais difícil pegar no sono assim. Mas com o dia exaustivo que tive, não resisti muito tempo.


Já era manhã quando abri os olhos. A cama e o quarto de Pedro estavam intocados. Ele não havia voltado. Será que o que fiz era motivo suficiente pra irritá-lo a ponto dele ir embora novamente? O pânico que ele saísse definitivamente de nossa casa me tomou.


Ele precisava pelo menos me ouvir. Mesmo que não me perdoasse. Arrumei-me e parti para onde acreditei que o encontraria àquela hora. Eu, que imaginava nunca mais ter que pisar naquele gramado, estava no maldito estádio de futebol outra vez, agora, atrás do meu irmão.


Eu não poderia mais mesmo ter visões agradáveis ali. E a primeira foi de David com a garota dos pompons. Embora eu acreditasse não sentir mais nada por meu ex-namorado, acho que meu coração sempre descompassaria ao ver essa cena. Orgulho idiota, talvez.


Forcei-me a ignorar. Enquanto caminhava, catava Pedro com os olhos e o encontrei atrás de tudo se amassando com outra cheerleader, mas não era a ruiva de quem a Guta tanto reclamava. Aquilo era um campo de futebol ou um bordel?


Minha presença não passou despercebida por alguns, entre estes, Eduardo. A forma como ele olhava para mim sempre me incomodava. Em compensação, nem fui notada por meu irmão quando me aproximei.
– Pedro... – Chamei baixinho. Em outros tempos eu simplesmente me meteria no meio dos dois, e eu queria mesmo fazer isso agora, mas alguma coisa dentro de mim me impedia.


Às vezes era simplesmente insuportável lidar com essas novas reações.
– Léo?! – Ele exclamou, soltando-se da garota para me encarar. – O que está fazendo aqui?
– Você não voltou pra casa... – Minha garganta deu um nó.


– Err... Letícia... A gente se fala depois, tudo bem? – Despediu-se.
A garota olhou para mim, e depois se voltou para Pedro novamente. A beleza dela me deixou atordoada.
– A noite foi perfeita... Se quiser repetir...


Ela se agarrou em Pedro sapecou-lhe um beijo que desentupira a pia mais engordurada de uma fast-food. Aquilo não era uma provocação da piriguete, mas surtiu o mesmo efeito, e algo ardeu no meu estômago. Mesmo assim esperei paciente.


Antes mesmo de a garota sair da minha vista ele estava me perguntando a mesma coisa novamente:
– O que está fazendo aqui, Léo?
– Eu já disse...


– Não, você não disse... E não é a primeira vez que durmo fora de casa, então eu continuo não entendendo!
– Você está sujo de batom... – Avisei-o.


Pedro esfregou a boca com a manga da camisa sem deixar de me encarar, a espera de uma resposta.
– Eu pensei que você tivesse ido embora... – Falei.


– Você sabe que não faria isso. Depois de tudo...

Não, eu não sabia. Não sabia nem a que “tudo” ele se referia, mas se eu tivesse parado para raciocinar, perceberia que ele não se mudaria de vez sem nem ao menos levar o celular. Agora eu parecia bem ridícula.


– Me desculpa por ontem, Pedro...
– Eu já estou acostumado!

Aquela afirmação me doeu mais do que se ele tivesse praguejado ou gritado comigo.


– Não... Você não está entendendo... Eu precisava mesmo ir... Era importante, embora eu só soubesse depois.
– É, Léo... Você tem suas prioridades e sempre fez tudo que quis. Já disse, não importa...


– Você está me julgando!
– Pelo que vi! Pelo que você não faz questão nenhuma de esconder! Nem de mim, nem de ninguém!


– E o que você viu? Do que você está falando, Pedro?
Eu fazia uma idéia, mas queria ouvir dele. Queria crer que pelo menos ele acreditasse em mim, mas ele desviou o assunto:
– Não se preocupe. Eu não vou embora, a não ser que você queira...


– Eu não quero! – Sobressaltei-me. Achava que isso tinha ficado tão claro!
– Tem certeza? Eu não ia mais atrapalhar seus encontros...


Então era isso? Ele pensava como todo mundo?
– Seja claro e objetivo comigo, Pedro... Jogue limpo! O que é que está te incomodando? – Eu o pressionei, mas nunca poderia imaginar o que ele me perguntaria.
– Você está apaixonada pelo primo da Nicole, Léo?


– Eu não estou saindo com ele, Pedro! Eu já te falei isso! – Disse impaciente.
– Não foi isso que eu perguntei...

Então o que foi? Ele queria mesmo dizer, “apaixonada”? No sentido literal da palavra? Eu saberia facilmente responder pra mim mesma, “não, eu não estou”. Eu não podia estar!


Senti calor e embrulho no estômago. O local também não ajudava em nada, menos ainda algumas pessoas que estavam ali. De repente, tornou-se impossível permanecer mais um minuto naquele campo.
– Pedro, eu quero ir embora. Pode me levar pra casa? Eu tenho algumas coisas pra contar, mas não aqui.
– Tá certo, Léo. Vamos lá... – Ele respondeu quase inconformado.


Percebi a inquietude de Pedro durante o breve percurso de volta. Ele balançava a perna incessantemente, mas não tornou a me perguntar. Porque ele queria saber? Será que meu silêncio havia respondido alguma coisa para ele? Mas que resposta teria sido, então? Eu mesma não quis trazer o assunto de volta.



2 comentários:

  1. Ainnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn
    É desesperador ser mulher!
    Ainda mais com tanto homem chovendo em nossa horta... Como escolher o certo?
    rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs
    Mew... Léo nasceu mesmo com o bum virado pra lua e não consegue nem perceber isso!
    Mas tudo bem, dá para entender... É mais fácil cuidar dos problemas dos outros que dos nossos.

    AMO!
    bjosmil! *.*

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  2. Huahsuhashaush, eu gostava quando vc dizia que queria ter os problemas da Léo! kkkkkkkkkkkkkkkk Eu tb não ia reclamar!

    ..: Bjks :..

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